segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O Mendigo da 25.

 A cidade é um caos criado por nós, um amontoado de seres onde muitos lutam para sobreviver em meio a essa bagunça. A estoria que irei contar é de mais uma dessas pessoas que batalham todos os dias para sobreviver, um velho mendigo que era visto perambulando pelas ruas da grande São Paulo. 
 Quem passasse ali pelas ruas da 25 encontraria este mendigo aglomerado em meio a tantos outros pedintes, seu visual não era tão diferente quanto a dos demais companheiros de miséria, nem tampouco sua faceta que como tradição (acho que é assim que posso classificar) possuía as mesmas características de um mendigo qualquer. Imagine então apenas a figura de um velho com roupas de trapo. 
 Ratos humanos enfileirados em calçadas jogados a sorte como cães de rua, sempre possuem suas manias, suas loucuras ou seus problemas que, por muitas vezes usam como desculpa ou fingem ter; no caso deste velho, ele não teve a sorte de poder fingir uma doença ou uma anomalia. Era aleijado, não podia mover as pernas, andava encima de um carrinho rolimã improvisado, que com sua boa criatividade o fez. 
 Geralmente esses homens possuem uma criatividade fora do comum, criam coisas que de momento a momento são roubadas por algum figurão da elite para criar moda entre os que são favorecidos. Mas eles não se importam, a miséria é cega, ela faz com que eles vejam apenas a desgraça em suas vidas... Talvez nem todos, é claro, mas em suma a maioria. Alguns conseguem enxergar azul por entre o cinza, porém este também não é o caso deste velho pedinte. Ele enxergava pouco, apenas o suficiente para dessenir os vultos. 
 Por mais que sejam pedintes, que pareçam sentir mais fome de possuir míseros centavos do que realmente comer, eles não visão realmente o dinheiro, sua fome e seus desejos são maiores do que possuir apenas o dinheiro, porém eles precisam do que o dinheiro proporciona, não há mais espaço para sonhos, quando pegam um punhado talvez nem saibam o que fazer, mas suas prioridades sopram mais alto, comer; beber ou até mesmo se drogar, não correspondem mais por si. E o velho pedinte pensava assim, apenas queria sua esmola de cada dia para poder comprar seu pão, tomar seu café e manter-se vivo. 
 -Oras! -gritava ele para o vento. -Por que diabos ainda vivo?!
 A noite era pior, nas manhãs ele observava toda aquela gente indo e vindo, todos com pressa, muitos cheios de sacolas na mão, crianças chorando por não poder ter um brinquedo; havia coisas engraçadas ali também, ele se entretinha, os muambeiros que sempre se instalavam ali na calçada onde o velho mendigo ficava, lhe contavam as boas novas. Discutiam sobre politica, finanças e até sobre cinema. Mas quando a noite caia ele se sentia sozinho, os outros pedintes corriam logo para durmir, pois durmir é o unico consolo, a unica fulga da realidade, mas o velho nem sempre tinha sono, então não havia de durmir. 
 No escuro ele ficava parado fitando o nada, já que de nada enxergava, sentia o vento gélido do sul tocar-lhe o rosto, sentia o cheiro da cidade a noite. Era calmo, tudo calmo, porém solitario. Como não sonhava, ao menos voltava no passado, como uma especie de sonho. 
 -Por que tenho que viver? -Perguntava o velho de novo.
 Lembrou então do que um dos bixeiros lhe disse logo cedo, contou que  um filme em preto e branco como os de antigamente estava em exibição nos cinemas. Então o velho espantou-se, como fizeram esta façanha? 
 Remeteu-lhe então lembraças de quando era menino de roça, lá em uma cidadizinha de Minas; O cinema tardara a chegar por aquelas bandas, na verdade também foi-se rápido. Vinha junto de um circo, uma companhia gaucha que passava pela cidade. O menino corria desimbestado até a tenda, como só tinha dinheiro para um dia, assistiu o dia todo o mesmo filme. Era A viagem a Lua de Mèliès... Que filme incrível! era de encher os olhos. 
 E dali então devaneava o velho sarnento, o cheiro da pipoca ainda lhe tomava o ofato. Naquele mesmo ano, lembrava o velho, sua mãe falecera, não por doença, mas por assassinato; seu pai havia matado a pobre mulher a golpes de facão e fugido por entre as matas, dias depois os oficiais local acharam o corpo do homem, que havia sido atacado por algum animal selvagem. 
 -Por que ainda tenho que viver? -Perguntava sozinho.
 Era triste, mas a vida não lhe poupou. Ainda pequeno foi mandado para um orfanato da igreja, não demorou muito para se rebelar perante as diciplinas rigidas do lugar, fugiu acompanhado de alguns colegas que lá fizera. Não desgrudava de seu melhor amigo, na rua aprenderam a se virar, malandros como sempre, batiam carteira como os meninos de Pedro Bala, alias, era inspirado nos Capitães que ele e seu parceiro tocavam suas aventuras.   
 Adoravam ler, embora fossem pobres; aprendera a ler no orfanato. Roubavam livros nas bibliotecas, suas preferencias eram sempre nacionais, admirava a crueldade da vida descrita pelos autores pré-modernistas. 
 Viu inumeras vezes seus colegas serem mortos pelos policiais ou pelas mãos de outros ladrões. Fugiu para a grande São Paulo junto a seu fiel amigo em busca de um futuro melhor, chegando na cidade foi preso, seu amigo felizmente escapou. Já ele ficou encarcerado por quase dois anos.
-Por que Deus? Por quê ainda tenho que viver? -Repetiu o velho carregando essas lembranças na cabeça.
 Lembrou ainda que procurou por seu amigo durante um tempo, e quase não o reconheceu quando descobriu que ele estava morando em um bordel. Seu amigo na verdade era uma moça, que agora com mais idade não podia mais esconder seus seios, era linda como as damas descritas em livros romanticos, embora seja uma mulher da vida. Após a descoberta o jovem manteve uma relação com sua amiga, se estabilizara financeiramente trabalhando como garçom no mesmo bordel que ela e dormiam no mesmo quarto. 
 Passou a noite tendo estes devaneios até que um dos muambeiros o acordou pedindo lincença para que pudesse depositar suas tranqueiras ali na calçada. Afastando seu carrinho o velho disse:
 -Mas um dia... Por quê não morro logo?
 E o dia passou como de costume, lembrou de novo do velho filme frances, e depois teve vontade de ver o filme novamente nem que fosse em vultos. Ainda em lembranças retomou ao devaneio passado, vislumbrou na mente a figura da linda mulher que tanto amava, mulher sim, pois já estavam crescidos. Ela estava gravida, ele possuia um bar. Gostava de sua vida e sua rotina até que um dia, em uma confusão no estabelecimento, um dos homens atirou em sua amada que tentou apartar a briga. Naquela noite ele havia perdido seu futuro filho e sua esposa. 
 -Deus, mate-me! Por quê ainda tenho de viver?!
 As lagrimas cairam do velho ao lembrar deste desastre. respirando melhor, retomou as lembranças, sentia a agonia que passara naqueles primeiros dias após a morte de sua mulher. Enlouquecido foi a procura do homem que lhe desgraçou. Não teve coragem de matar, mas para seu azar na mesma noite outro homem estava com as mesmas intenções, e disparou na sua frente. A policia rapidamente chegou ao local, viu o corpo no chão e o futuro mendigo ao lado do corpo, prenderam-no injustamente.
 -Por que?! -Chorava o velho.
 Na prisão foi torturado, ficaram sequelas em seu corpo, não podia mais mover os dedos da mão esquerda e nem dobrar muito os joelhos; porém conseguiu fuguir do lugar, mas isso lhe custou a capacidade de andar, teve de pular um muro muito alto, e ele mal sabia que dava direto para um penhasco, caiu de costas e quebrou a coluna. Passou anos em uma cama de um hospital publico, depois foi lhe dado uma cadeira de rodas. Ele não tinha para onde ir. 
 -Eu deveria ter morrido ali, por que não me levou senhor? por quê?!
 Com o tempo a cadeira já não lhe servia, já estava instalado ali na avenida, arranjou um carrinho de rolimã com um garoto que trocou pela velha cadeira de rodas do mendigo, então ele ajeitou o carrinho e adaptou para sua postura. Passou o resto de sua vida ali, pedindo dinheiro, comendo de favor, de vez em quando se banhava no sobrado da casa do dono do bar onde ficava sua calçada. 
 O tempo passara rapidamente, todos os fatos pareciam ter sido recentes, sua mente ainda continuava perturbada. Com a velhice veio-lhe também os problemas de saúde, sentia dores nos ombros, tinha sarna e uma catarata horrível atingiu-lhe em cheio um dos olhos, afetando em parte o outro também.
 -Leve-me Senhor... Poupe-me o sofrimento de viver. -Agora suplicava o velho olhando para o céu nublado de uma noite de inverno.
 Logo após essas dolorosas lembranças o velho mendigo decidiu confinar ao dono do bar sua historia e também seu antigo desejo de rever o filme de Georges Méliés. O dono do bar senssibilizado levou o velho para uma sessão que teria de A viagem a lua em um cineclube. 
 O velho ficou muito animado, colocaram-o na primeira fileira para poder enxergar melhor o filme. Durante a exibição toda a sua vida lhe passou pelos olhos. Sentia que estava partindo, seu coração estava muito acelerado, era um infarto. 
 Ao final do filme um dos homens que estava na cadeira ao lado viu o velho com dificuldades de respirar, gritou pelo lanterninha, um homem que se declarava médico se destacou no meio da platéia, correu para socorrer o mendigo. Antes de dar o ultimo suspiro o mendigo gagejou:
 -Por que só agora?
Então uma voz no seu ouvido susurrou:
 -Você sempre perguntou o porquê de não morrer, porém você sempre lutou para viver, você sempre saciou a fome quando ela te atacava, sempre procurou se manter bem agasalhado quando o frio lhe batia, sempre procurou segurança quando sentia o perigo. Até mesmo agora você lutou para respirar... Você, meu velho, poderia ter morrido se quisesse, mas em vez disso, apenas viveu. 
 Então, seus olhos se fecharam, a luz da sala do cinema ainda se mantinha escura, o fim se anunciou no filme, e a imagem da lua abusada frisou-se na tela.

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